Wednesday, June 13, 2007

O que sinto de Macau está muito bem descrito neste artigo

O que sinto de Macau está muito bem descrito neste artigo de Helder Fernando do jornal Macau hoje. E gostava de partilhar pois não tenho a "arte e engenho" no que respeito ao campo das letras;) que me permitam descrever tão bem o que se passa em Macau.
Aqui vai: E, NO ENTANTO... (o título do artigo)

Esta cidade, esta RAEM, padroniza, constantemente com mais e mais nitidez, as diferenças entre nós. Não as naturais e saudáveis diferenças culturais, de opinião, de estética, de ritmo, até de ambição. Mas as diferenças entre o gostar e o ficar indiferente; entre a ambição sem pejo nem freio e o desejo de desenvolvimento; entre a convivialidade (quase sempre algo distante, sim) e a proximidade do empurrão; entre o arejamento saudável e o esmagamento.Há atrocidades no quotidiano. Erguer mais muralhas, e cada vez mais para cima, essas paredes monstras escurecedoras da cidade, torna-se uma religião. O espaço urbano desta RAEM deixou, definitivamente, de ter sentido ético. Em vez de se libertarem mais espaços, aprisiona-se a cidade. Salvo um ou outro exemplo excepcional, não se notam prioridades no campo sócio-urbanístico, apenas remendos pacóvios. A prioridade das prioridades é o betão armado, o aterro, o enriquecer de uns poucos, rapidamente e em força. E a todo o custo. E, no entanto...E, no entanto, continuam os défices graves na saúde pública e até privada. Nem um centro oncológico digno desse nome existe, por exemplo. Os dirigentes e os que podem vão tratar da saúde fora de Macau. É melhor não entrarmos em pormenores.E, no entanto, prosseguem as graves carências no ensino, desde o secundário ao superior. Familiares de dirigentes e familiares de quem pode vão estudar fora de Macau. É melhor não entrarmos em pormenores.E, no entanto, continua a perguntar-se: como vai a velha ideia de um verdadeiro, organizado e vigiado mercado abastecedor de bens alimentares à região? É melhor não entrarmos em pormenores.E, no entanto, como gira, florescente e em aparente roda-viva, a exploração espectacular do parqueamento automóvel? É melhor não entrarmos em pormenores.E, no entanto, como está a ser gerido, ao mais alto nível, o espectro radioeléctrico legal? E a exploração, agora pelos anteneiros, da televisão chamada por cabo? É melhor não entrarmos em pormenores.E, no entanto, as artes não têm uma academia à altura de tanta vaidosa pretensão oficial sobre outras matérias e, muito mais triste, à altura dos nossos talentosos artistas e potenciais. É melhor não entrarmos em pormenores.E, no entanto, em vez de se ir projectando uma cidade dos saberes – desde logo, do superior saber sobre o negócio e desenvolvimento de casinos - resolve-se a falta de recursos humanos com a importação de mão de obra, mesmo que não seja, nem de longe, especializada. Alguma, sabemos, especializa-se por cá. É melhor não entrarmos em pormenores.E, no entanto, ouve-se comentar em voz alta a falta de transparência no que toca aos ditos projectos de desenvolvimento urbanístico. A propósito, que utilidade está tendo a chamada Sala de Exposições do Desenvolvimento Urbano de Macau, construída há menos de meia dúzia de anos propositadamente para promover os projectos de construção urbana? Alguém liga àquilo? É melhor não entrarmos em pormenores.E muitos de nós, nostálgicos e praticamente passivos, a lembrarmo-nos do tanto que nos rebelávamos, duas décadas atrás, com umas singelas e meio tolas bricolagens macaenses.Macau disfarça-se completamente de outra coisa e ainda nem sequer completou a borrada dessa máscara em cima de justaposições, de sobreposições, por causa de suposições.Há cada vez mais locais de Macau onde as pessoas não se sentem bem. Porque lhes destruíram as afinidades.Uma cidade e os seus moradores enraizados, mais antigos, são as duas principais partes de um todo e ambos compõem uma história própria, singular de tradições, de significados, de personalidade, de cultura. Naturalmente, com renovações, mas não necessariamente com prejudiciais exuberâncias urbanísticas e outras.Cidade enfeitada por tantos dragões, que agora estão queimando e devorando as próprias caudas. Os especialistas que definam a patologia, se estiverem interessados nisso.Não existe, verdadeiramente, o advento de uma nova sociedade, de novos pensamentos, de outros pontos de partida culturalmente pensados sem ser sob a ideia do lucro rápido, de novas formas não diletantes de organização da urbe. Chega a parecer que quem administra directamente a RAEM parece nivelar os residentes muito por baixo. Coisa que será própria do capitalismo selvagem mas, naturalmente, pouco própria sob uma bandeira comunista, cujo primeiro ideal é ter o povo na máxima consideração. Por muitas diferenças que existam na arquitectura legal entre esta região e a China continental. O que se sabe é que há dirigentes locais que fazem parte da estrutura de topo do Partido Comunista Chinês e da Assembleia Nacional Popular. Deviam, por cá, praticar mais a ideologia que perfilham. Ou, afinal, não perfilham e é tudo uma questão de adaptação às regras impostas pelo mercado? Sejamos claros.Assiste-se, sim, ao vale quase tudo e por vezes ao vale tudo e mais alguma coisa. Ninguém com responsabilidades assume ser necessário e urgente parar o bastante para pensar alguma coisa. A cidade e seus aterros como braços de polvo gigantesco, as margens cegamente oprimidas deste rio, vão resistindo, por enquanto, em quase silêncio. O geral e estranho compromisso cinzento e até mesmo o medo estão obscuramente escondidos, depositados atrás de quê? É esse medo que me faz medo.Mas acontece que a falta de respeito pelo património de Macau já vem de longe. Paciência, mas é verdade. Existem várias formas de destruir memórias colectivas. O passado local encarregava-se de o fazer do modo mais barato e mais preguiçoso, abandonando e deixando degradar até à ruína. De vez em quando demolia e entretinha-se a alterar as célebres listas do património cultural do território administrado pelo senhor governador da metrópole.Claro que ninguém quer voltar ao tempo do morador de rua, dos serões passados à porta de casa. Mas os códigos presentes andam a tolher os movimentos da região. Uma região viva só o é enquanto tiver pessoas vivas. E críticas. E vivas.Esta terra ficou armadilhada com a entrada dos sitiantes que, como outros de cá, não a entendem nem nunca a entenderão.E, no entanto...
De Helder Fernando

1 comment:

playmaker 10 said...

E, no entanto, para ca vimos e por ca vamos ficando.